Quem somos nós se o Mundo* não acabou de ser criado? [uma breve relação entre os pensamentos indígenas, cientista moderno, taoista e monoteísta]

Quem somos nós se o Mundo* não acabou de ser criado? [uma breve relação entre os pensamentos indígena, cientista moderno, taoista, e monoteísta].


De Souza, Jakeline
souzajakelinede@gmail.com


"A voz de Deus é a voz do Povo" aprendi com minha mãe isso e, provavelmente, vocês também com as suas. Sábia, era preciso mascarar a sabedoria para que não morrêssemos por nossa honestidade, Deus é o povo.

Os espaços para apresentarmos outras ideias, que não sejam as hegemônicas e institucionalizadas, cada vez mais estão passando a existir. Os comportamentos mais cotidianos e privados, assim como as leis, estão mudando, e a evidência dessa transformação suponho que faça parte das novas condições para a comunicação. É por isso que publico essa ideia aki.

Se a voz do povo é a voz de Deus, então o povo é Deus. Mas, nós somos o povo, e não somos onipotentes, somos interagentes, interdependentes, uma multidão de criaturas criadoras que combinam desejos. Entendo que nosso poder criador está apresentado pela inteligência indígena em poéticas  co-criativas Tukano/Dessana/Piratapuia/Tuyuka/Yepamahsã sobre quem somos nós e de onde viemos.

Dizem: "a Origem é Nossa Antepassada**, como nossas avós", e chamam-na "Avó do Mundo"!!! Avó do Mundo criou o Primeiro Avô do Mundo, que criou muitos seres, e minha ênfase aqui, não é a relação entre gêneros, mas a distância entre uma noção de "Deus", conforme as religiões monoteístas cristãs, judaicas, muçulmanas, e a compreensão apresentada pelos indígenas sobre a Origem de tudo quê/quem existe. E é importante lembrar que ouvi diversas explicações sobre o quanto a Origem da Existência não foi uma mulher, e o primeiro Avô do Mundo não foi um homem, mas o quanto ela é associável a nós mulheres e ele é associável aos homens, conforme nós nos reconhecemos hoje nesse "Mundo".

Para o que conheço sobre as explicações apresentadas por anciãs e anciãos indígenas, o que tive a oportunidade de conhecer dito da boca de Pajés sobre a Origem no passado, as explicações ressaltam: "como as mães de nossas mães, nos criam, nos geram, passamos a existir através delas, elas foram criadas por suas mães, nossas avós, e elas por nossas bisavós, assim é desde a Origem Criadora, quando existia Nada, era a Escuridão, o Vazio, Ela criou a Si por Si Mesma".

Para as religiões, diferente da compreensão indígena que conheço, a noção de "Deus", como criador original, é transcendental à existência material, não está no passado. Para essas religiões nossa condição é diferente da condição da origem do que somos.

Pois bem, na explicação indígena somos descendentes dessa Origem ("divindade", conforme mais comumente traduzido nos compêndios de Antropologia, mas os indígenas que conheci traduziram por "antepassadas", apesar das interlocuções "brancas", que insistem em dizer que Ye'Pa´ é uma "divindade", tentando confortar o pensamento cristão no pensamento indígena), significa que somos Criadoras/es também! Herdamos a qualidade criadora de Nossa Origem, tal qual herdamos caracteres de nossas antepassadas e antepassados, mulheres e homens.

Isso, é diferente da criação do Deus cristão, extraordinário, transcendental, imaterial, onipotente, onisciente, onipresente, antagonizando nossas limitações como indivíduos e espécie, restringindo à Humanidade consciência/alma/eternidade.

O Mundo. no presente, na explicação indígena, é a evidente continuidade de  criações desde a Origem até o Presente que está sendo criado por Nós (no plural), AGORA!

Ouvi a afirmação: "O Mundo não acabou de ser criado, está sendo criado neste momento, e nós o estamos criando", do Kumu Gabriel dos Santos Gentil, que transcreveu e traduziu gravações das falas de anciãos, feitas pelos padres salesianos ainda na primeira metade do séc XX. Ora, ora, concordo! Além de ver que este lugar de criação é politicamente relevante para minhas expectativas pessoais para a Humanidade.

[ O oráculo chinês, I Ching, fala em transformações, em Yin e Yang, duas fontes para a criação de tudo o que existe, e, na condição de transformação e não de criação, marca a diferença fundamental: para os chineses a transformação não pressupõe nossa ação criadora como continuidade criadora da Existência, no entanto, busca a compreensão sobre esse Universo de Mutações de modo a orientar nossas vidas e toda a existência, que são apresentadas em dimensões diversas da relação entre essas forças Yin e Yang]

A contemporaneidade da criação, segundo os indígenas que conheci e li, parece, sim, com as teorias mais "modernas" sobre o universo em plena expansão; e nossa antepassada primordial, na minha compreensão, é mais traduzível por "bigbang", do que por "Deus". O "bigbang" é nossa ancestral primordial, e os cientistas "pós-modernos", apesar de confinados ao limite da divisão entre materia espírito para compreender a Humanidadeda, sob a teoria do BigBang estão mais próximos da compreensão indígena, "são mais nossos parentes", do que monoteístas das religiões que foram/são importantes por ali, entre Europa, África e Ásia, e determinaram em grande medida os limites e possibilidades para nossas vidas, desde a origem dos impérios até hoje.

É bom lembrar também que para as inteligências indígenas, animais, nuvens, árvores, mares, rios, pedras e estrelas são sujeitos, e isso significa que criamos como Humanidade, mas que existem outras forças em relação co-criadora.

Esta compreensão a mim parece tão óbvia, tão evidente, e satisfatória, e, ao mesmo tempo, simples, relacional e amorosa: nós criamos nossas existências em uma dinâmica co-criadora no Cosmos.
Nesse sentido, ouso afirmar que o caminho para acessar algum conhecimento deve, antes, estar sedimentado numa espécie de amor pela Humanidade e pela existência capaz de dar acesso ao sentido e à forma do que está "além" de nós, aquém pertencemos. É como se os sentimentos fossem portas de acesso à compreensão, impossível de acessar no confinamento da Objetificação-de-Tudo nos aparatos metodológicos para o controle sobre as experiências, o que justificou teorias até a primeira metade do séc XX, sem oposição crítica respeitada.

Assim sendo, rendo-me ao calor da fogueira, a Tembo, à Ye'Pá, à Finitude e à Eternidade diante de mim, que sou eu desde as estrelas, por Amor. E a angústia impilsiona, porque sinto na propria carne o quanto precisamos alcançar uma condição superior de satisfação com a Vida urgentemente. Essa Objetificação-de-Tudo tem sua origem na economia de devoramento da vida dos povos, a que aponto como fonte de toda a nossa desgraça, desde sua origem, na origem dos impérios. Portanto, nós que queremos viver a plenitude de nossas possibilidades humanas, a saúde, a felicidade,  a dignidade, o amor à vida como parte cotidiano e compartilhada por toda a Humanidade, devemos urgentemente devolver aos povos o poder sobre suas próprias vidas. Esse é o caminho para a experiência  plena de nossa herança criadora. Nosso poder criador está confinado à Economia Canibal, Economia da Morte, Economia da Escravização dos Povos. Deixemos que a qualidade "criadora" e "sagrada" das "divindades" que somos exista em sua plenitude.

Este texto foi publicado pela primeira vez em outubro de 2013 no Facebook, é o texto de apresentação de uma imagem de capa do meu perfil. Hoje amanheci com um like para esta capa e li o texto que acompanha. De fato esse texto traz uma síntese clara do diálogo entre os pensamentos indígena, científico, taoista e monoteísta. Essa reflexão é fundamental para a compreensão de quem é este trabalho por democracia direta no Brasil, esta proposta de transformação das relações econômicas e políticas, esta criação de um Novo Mundo a partir do paradigma ancestral indígena, que tenho chamado de Paradigma da Vida. Tenho muito a dizer sobre isso, mas neste momento apresento o breve texto acima.

** existem diferentes versões para a origem, alguns em uma origem feminina, outros em uma origem hermafrodita, e outros em uma origem masculina. No entanto, ouvi dos indígenas com os quais trabalhei que a ênfase na origem masculina estava relacionada à perseguição dos padres contra as origens hermafrodita e mulher, especialmente quando as casas comunais eram construías inspiradas nessas formas (formas e não "espíritos").

* por gentileza, compreender que Mundo, com inicial maiúscula, é uma tentativa de legitimar um modo indígena de expressão para a noção de Cosmos, com a diferença de que a noção de "Cosmos" tem apreendido apenas a física, sem incorporar a esta noção a inter agência da consciência humana. A Ciência indígena se destaca por esta diferença epistemológica.




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